segunda-feira, 24 de novembro de 2008

ENTRE RELIGIÕES E ESTADOS: TRANSFORMAÇÕES DA LAICIDADE

para John Lennon

Hoje marca uma data fatídica para alguns… O Vaticano “perdoou” a John Lennon a sua observação, feita em 1966, que “the Beatles are more famous than Jesus Christ”. Neste dia, que marca os 40 anos da publicação do The White Album, o Vaticano reconheceu a contribuição à cultura deste monumento da música pop. Conhecido pelas músicas, “Revolution 1” e “Revolution 9”, a porta-voz do Vaticano esqueceu de mencionar que entre as outras músicas no The White Album, encontra-se “Happiness is a Warm Gun”. Marc David Chapman, um cristão evangélico e assassino de Lennon, que também se lembrou da observação de Lennon, deve ser contente com o reconhecimento que passa na intertextualidade.
Por isso, estou colocando aqui, hoje, um artigo pedido por um brilhante e simpático aluno de direito meu, Diogo, sobre filosofia e laicismo.


O ano 2005 marcou o centenário, na França, da Lei sobre a laicidade. O Estado destacou o acontecimento, mas na sociedade raramente se viu uma comemoração apostando tanto na transformação, e até mesmo na depreciação da Lei. A laicidade de tipo francês é um modelo jurídico para separar as instituições religiosas do Estado, mas sua existência jurídica se confronta à pressão contínua de duas fontes principais. Por um lado, os Estados com maioria católica estão num processo de reavaliação da prática religiosa diante do avanço das outras religiões – isso não é o caso apenas da França. Por outro lado, a transformação demográfica dos países da Europa ocidental, do Canadá e dos EUA, para realizar a integração dos imigrantes de culturas e confissões diferentes, necessita de uma relativização da laicidade, para sua forma jurídica, como na França, não aparecer como uma ameaça às tradiçãos nativas dos imigrantes.

Se se pode criticar uma certa deficiência da laicidade nos países que a têm inscrito na Lei fundamental, é verdade que poucos países e poucas religiões no mundo têm aplicado princípios laicos. Dá para perguntar se o cristianismo, e mais especificamente, o catolicismo, estaria mais inclinado a proteger o laicismo. Por diversas razões, integrantes do corpo eclesiástico da Igreja católica não podem fazer política, uma delas sendo, no Brasil por exemplo, a coerência da condenação da teologia da libertação que levou à excomunicação de Leonardo Boff pelo Cardinal Ratzinger, o atual Papa Bento 16. Contudo, as mesmas restrições, no que diz respeito à prática política, não se aplicam aos pastores e bispos de outras confissões. Com 62 deputados e 4 senadores compondo a chamada “bancada evangélica” no País, pode-se falar de um déficit efetivo de laicidade.

Na França, diante do crescimento da população islâmica no país, a Lei da laicidade foi reforçada com a Lei Debret em 2002, também conhecida como a “lei contra o véu islâmico”. Argumente-se que a Lei funciona na direção das confissões cristãs, pois visa a proibição do uso “ostentatório” de símbolos religiosos nas escolas públicas. Resultado de uma pesquisa política sobre a harmonia ameaçada da coexistência religiosa na França, provocada parcialmente pelas guerras no Oriente médio, a Lei Debret ainda se conforma às bases republicanas da Lei de 1905.
Outro é o conceito de “laicidade positiva”, recentemente avançado pelo atual Presidente Nicolas Sarkozy. Esta valorização da laicidade implica que, até agora, ela tenha sido “negativa”. Considerando que o presidente da República foi nomeado “cônego de honra” da igreja da São João de Latran – título historicamente conferido aos reis franceses desde que Henrique IV, antes protestante, se converteu à igreja romana, mas não aos presidentes do estado laico – a separação entre o Estado francês e o catolicismo parece ter dado um enorme passo para trás.

Pois, como explica Jean-Claude Monod, a laicidade apresentada na Lei de 1905 era “neutra” no que diz respeito às religiões. “Fundada sobre o princípio da igual liberdade de consciência, a Lei garante à todas as religiões o livre exercício de culto, enquanto exclui a possibilidade de um financiamento das religiões pelo Estado ou de uma participação dos cléricos no ensino público, garantindo assim o direito para as consciências atéias ou agnósticas de não sofrerem o proselitismo religioso por parte do Estado, e para os crentes, de não sofrerem a propaganda do Estado em favor do atéismo.”[1] A proposta de Sarkozy vai contra os princípios da Lei.

Quanto ao Brasil, o Decreto 119-A, de 17 de janeiro de 1890, instaurou a laicidade no País, o que foi reforçada na Carta de 1924, e no art. 19 da Constituição de 1988. Quanto ao ensino religioso, a Lei de Diretrizes e Bases estabeleceu, em 1996, que ele não será financiado pelos cofres públicos, situação esta que mudou no ano seguinte, na Lei 9475/97.[2] Na verdade, o grau de separação entre Estado e Igreja não é tão grande para que o Vaticano deixe de crer que seus direitos de colaboração são harmoniosamente conciliáveis como o Estado brasileiro e se abstenha de oferecer ao Governo federal uma forma de parceria, em contrapartida da manutenção da proibição do aborto, ou para que a CNBB não intervenha contra legalização de pesquisas com células-tronco. Graças à visão clara do Ministro da justiça, Tarso Genro, quanto à possibilidade no futuro de emendar a lei do aborto, o Brasil pode ainda reinvindicar seu caráter laico.

Por outro lado, o Governo federal não tem um poder de orientação sobre a laicidade nos estados da União. Durante os oito anos dos governos Garotinho/Mateus, o Estado do Rio de Janeiro instaurou uma política integrista cristã referente ao ensino público, comparável à política dos estados mais conservadores nos Estados-Unidos, como o de Kansas, onde é proibido o ensino da teoria da evolução de Darwin nas escolas públicas. Isso nos informa, quanto ao Brasil, que o resurgimento da oposição à teoria de Darwin, hoje em dia, vem mais das diversas confissões evangélicas do que do catolicismo de antes. A lei definindo um ensino público “confissional” foi promulgada em 2000 (Lei 3459/00). A Lei estipulou que um “credenciamento” da orientação religiosa dos professores deviam ser fornecido por uma “autoridade religiosa”. A tentativa de separar a capacitação dos professores desta definição, na Lei 1840/2000, recebeu o veto, em 3 de novembro de 2003, pela Governadora Rosinha Mateus Garotinho. Seguiu a sua declaração, em maio de 2004 de ser criacionista e a favor do ensino do criacionismo nas escolas públicas ao lado das teorias científicas.[3]

Hoje está mais claro que a separação histórica da Igreja do Estado não acabou com a religião. A laicidade marca uma diretiva específica do Estado, mas na sociedade é a renovação das religiões que se sente com um vigor crescente. A tese de Samuel Huntington, que tem influência na orientação da polítical internacional apesar do seu caráter hiberbólico, aponta para uma re-identificação com as raízes judeo-cristãs do Ocidente.[4] Além disso, há trinta anos, evidenciam-se o surgimento de linhas fundamentalistas em todas as religiões. Elas pregam a necessidade de estratégias e ações belicosas para resolver a sua incapacidade de encontrar o outro.

Se a neutralidade jurídica da Lei sobre a laicidade não tinha a alteridade cultural em vista quando foi aprovada, hoje é imprescendível a teorização desta questão quando discute-se, referente ao direito, a laicidade e a liberdade religiosa. Fora da exploração política e tecnocrática da tensão estado/religões, o lugar mais neutro para se tratar da complexidade da questão é a filosofia política e a filosofia do direito. Posições inovadoras neste assunto estão sendo debatidas por Marcel Gauchet, Jurgen Habermas e Charles Taylor. Contudo, antes de comentá-los, cabe discutir a visão mais controvertida sobre a questão, que é a de Tariq Ramadan.[5]

Musulmano formado em filosofia na Suiça, Ramadan é uma das vozes mais engajadas da integração dos musulmanos no Ocidente, inclusive sobre a cultura distinta que os musulmanos estão desenvolvendo no que diz respeito aos seus países nativos. Ao mesmo tempo, Ramadan é regularmente acusado de ter “um duplo discurso” e de ser um “embaixador do fundamentalismo islâmico” no Ocidente. O que é indubitável é que Ramadan desenvolveu um discurso baseado na tradição filosófica sobre a mediação entre tradição coránica e laicidade ocidental. Os argumentos dele não se distinguem fundamentalmente daqueles de filosofos ocidentais tais que Paul Ricoeur, por exemplo. Há nos escritos dele sobretudo a aceitação de uma laicidade cultural que tem como objetivo a coexistência pluri-religiosa no espaço cívico.

Se a questão por Ramadan é como manter o islam íntegro na coexistência com a laicidade, a questão de Marcel Gauchet é pensar o seguinte: “como fazer democratas com crentes e ao mesmo tempo combater a versão da crença associada à uma política heteronômica”?[6] Pois, para Gauchet a efetividade de um estado realmente laico se coloca a partir da questão de autonomia política, moral e jurídica. Em La Religion dans la démocratie, Gauchet argumenta afirmativamente que a sociedade francesa entrou numa tal autonomia. Neste sentido, ele descreve o cristianismo como a religião da “saída da religião”, o que caraterizaria melhor a situação na França, segundo ele, do que a bandeira da laicidade. Segundo ele, “nem o debate entre morte de Deus e retorno das religiões, nem a interpretação da permanência da fé são sustentáveis. Assistimos simultaneamente aos dois processos, a uma saída da religião, entendida como saída da capacidade do religioso de estruturar a política e a sociedade, e a uma permanência do religioso na ordem da convicção última dos indivíduos, terreno em que, segundo as experiências históricas e nacionais, se apresenta um vasto espectro de variações.”[7] A liberdade das religiões seria acompanhada por um individualismo imposto pelo Estado, que lhe garante que a domínação do mercado se torne não negociável segunda as normas da democrácia popular.

Charles Taylor argumenta que entraremos num período pós-durkheimeano da religião no Ocidente.[8] Ao argumentar em favor da função integrativa das religiões, Taylor enfatisa que nossa epoca é de fragmentação do vínculo sagrado, e isso teria levado diretamente ao enfraquecimento do ser coletivo. O libertarianismo seria uma sintoma da perda deste vínculo.
Por sua vez, J. Habermas, nos seus últimos escritos, exprime sobre a religião um otimismo segundo o qual “a tolerância religiosa é ineluctável”[9]. A religião acharia seu lugar no pensamento pós-metafísico no modo racional, porque já percebemos no Ocidente a emergência de uma sociedade “pós-secular”. Desta forma, “uma secularização que não aniquila, realiza-se no modo da tradução. Isso é o que o Ocidente, enquanto poder secularizador universal, pode aprender a partir de sua própria história.”[10]

Uma boa razão política para se garantir a pluralidade religiosa assim postulada é que “mesmo o direito racional igualitário possui raízes religiosas, raízes essas que inserem modos de pensar nessa revolução, que coincidiu com a ascensão das grandes religiões universais.”[11] A isso acrescentam-se os primeiros passos da passagem do sagrado para o profano. No caso do movimento negro norte-americano pela igualdade racial, por exemplo, encontramos uma clara afirmação da capacidade interna das religiões de efetuar “transformações jurídicas, políticas e sociais”. Esta afirmação é típica da convicção habermasiana da nossa capacidade coletiva de alcançar uma liberdade maior, e uma maior efetividade política, por um compromisso com a democracia constitucional.

Num momento em que o avanço das religiões parece seduzir a população diante da perda, com a globalização, de perspectiva política nacional, Habermas lembra o papel fundamental da religião tanto para a cultura quanto para a política, mas sempre oferecendo os termos segundo os quais devemos reconhecer as verdades diferenciadas em concepções pluralistas da fé religiosa. Como escreve Habermas, “o salto na reflexividade que tem caraterizado a modernização da conciência religiosa nas sociedades liberais fornece um modelo para a mentalidade de grupos seculares nas sociedades multiculturais também.”[12]


[1] Jean-Claude Monod, « L’abandon de la neutralité laique », in Le Monde, 21 de janeiro de 2008.
[2] Emerson Giumbelli, “Religião, Estado, modernidade : notas a propósito de fatos provisórios”, in Estudos Avançados,vol. 18, no. 52, p.
[3] Emerson Giumbelli; Sandra de Sá Carneiro (org.), Ensino Religioso no Estado do Rio de Janeiro. Registros e Controvérsias. (Comunicações do ISER), Número 60, Ano 23, 2004.
[4] Samuel S. Huntington, O Choque das civilizações e a mudança na ordem mundial, Lisboa: Gradiva, 1999.
[5] Tariq Ramadan, Western Muslims and the Future of Islam, Oxford: Oxford University Press, 2004.
[6] Marcel Gauchet, La Religion dans la démocratie, Paris : Folio, 1998, p. 28.
[7] Gauchet, M, et Ferry, L., Le Religieux après la religion, Paris : Grasset, 2004, p. 55.
[8] Charles Taylor, Varieties of Religion Today. William James Revisited. Cambridge: Harvard University Press, 2002, pp. 75 ff
[9] Jurgen Habermas, “Um diálogo sobre Deus e o mundo”, in Era das transições, op. cit., p. 202.
[10] Habermas, O Futuro da Natureza humana,trad. Karina Jannini, Revisão por Eurides Avance de Souza, São Paulo, Martins Fonte, p. 152.
[11] Ibid., p. 145.
[12] Habermas, J. “Religious Tolerance – The Pacemaker for Cultural Rights”, in Philosophy, vol. 79, no. 5, 2004, p. 17.

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